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Friday, February 15, 2008

gu-gu dá-dá! somos todos bebês, quem vai ser a babá?

Hoje em dia tudo vêm com termos de uso e avisos.

Compre um chocolate: "fábricado em um local que lida com nozes, ovos, castanhas e outras coisas que outros seres humanos comem, mas que podem te matar, se você for alérgico a eles, pelo simples fato que eles estiveram ao mesmo tempo, na mesma fábrica."

Entre num site: "este site é provido a você AS-IS, portanto nem pense em processar os autores já que nós nos isentamos de qualquer culpa caso você siga as instruções de construção de bomba atômica caseira que você lê nesse momento."

Abra o freezer e veja a bela foto dos nuggets de frango: "sugestão para servir, já que você pode pensar que ao abrir a caixa, você irá encontrá-los já fritos, num prato e guarnecidos pela alfacinha."

Ou ainda na TV: "esse remédio não deve ser usado em caso de suspeita de dengue, mas na verdade você devia procurar um médico antes de sair engolindo qualquer droga que aparece na TV; mas já que você não vai, não venha processar a gente depois dizendo que a gente não avisou."

Ou o meu preferido, no café: "cuidado, o conteúdo está MUITO quente; não vá se queimar, sua besta."

No final das contas, qual é o objetivo aqui? Em alguns casos é dizer: não nos diga que você não sabia. Ao transferir a responsabilidade para o usuário final, o proclamante se isenta de toda e qualquer responsabilidade, e o usuário que se vire.

Nesse grupo de avisos, a conseqüência natural (sinto muito, mas abolir a trema é jogo duro; deixo essa pra geração do meu filho) é o abuso. A partir do momento que escrever uma frase no lado de fora do pacote te isenta de responsabilidade, isso vira um cartão de saída da prisão (Banco Imobiliário, alguém?)
Um ótimo exemplo são os termos de uso dos softwares da Microsoft. Na embalagem, do lado de fora, está escrito que "ao abrir a embalagem você tacitamente está aceitando os termos de uso do software." E onde estão os termos de uso? Dentro da embalagem, é claro. Não só isso, lá nos termos você encontra um aviso dizendo que, caso haja algum dano ao seu computador (tipo, sei lá, algo sem importância como o "hard-disk" ser apagado), a Microsoft só pode ser processada por danos ao máximo de 5 dólares, além de outras espertezas.

Jóia, não? Como disse um dos meus colunistas favoritos, vamos parar com essa viadagem e vamos logo pro que interessa: vamos escrever nos termos de uso que, caso você abra a embalagem, o Bill Gates vai poder trepar com a sua esposa. Ele mesmo (o colunista, não o Bill Gates) bolou os termos de uso para o site dele em resposta a essa "onda" e é um "must-read" (apesar das letrinhas miúdas). Se você dispor de 10 minutos e estiver afim de rachar o bico, vá lá.

Mas existe uma outra categoria de avisos e termos de uso, uma bem mais perigosa que o simples cartãozinho de Banco Imobiliário. É o bicho-papão.
Esses avisos são aqueles que querem te assustar. Eles querem que você tenha medo de tudo e de todos. Um dos mais famosos:
Pra quem não conhece, esse é o sistema de avisos de segurança do governo dos EUA. Ele tem 5 níveis. Severo, alto, elevado, guardado e baixo. Quatro deles indicam que você tem que ficar esperto por que, a qualquer momento, a qualquer hora, em qualquer lugar, quando você menos esperar, o Bin Laden pode cair na sua cabeça com outro 747. O quinto diz pra você que as chances disso acontecer são menores, mas fique esperto seu punk porque não é impossível. Adivinha quantas vezes, desde que esse sistema foi estabelecido em 2002, o aviso chegou no azul ou verde? Nenhuma, claro.

Esse é o próximo passo no sistema de avisos e termos de uso. Vamos assustar, vamos deixar eles com medo, com tanto medo, que eles não vão ter coragem de sair de casa. Tudo que eles quiserem fazer, eles vão checar com a gente antes. Eles não vão fazer nada que a gente não queira que eles façam. E já que estamos no pique, vamos fazer eles comprar tudo que a gente mandar. Bem vindo ao Controle das Massas "Millenium Edition"!

Quanto mais te tratarem como um bebê, quando mais imbecilizado você for, mais fácil que te manipulem. Afinal de contas, alguém tem de ser a babá para todos esses bebês -- o governo, as grandes corporações de mídia e de manufatura irão rapidamente se oferecer a carregar esse "terrível fardo".

Quer tratamento de bebê mais explícito que o que eu encontro em cima da torneira da pia de praticamente todos os hotéis que tenho me hospedado na Europa?

Mas o pior é que nós gostamos de sermos tratados como bebês. Nós gostamos de não ter que pensar. Esse é o sonho secreto, mais recôndito de todos nós: a inveja dos animais. Os animais não precisam pensar, se desgastar, se assustar, se emocionar. Eles tem o instinto, que supre essa ausência. Suas respostas são automáticas, condicionadas a cada ato. Um afago é respondido com um abano de rabo. Uma explosão, com a fuga.

No ser humano não. Todas nossas respostas vêm após uma reflexão, que leva em consideração inúmeros fatores. O ser humano é o único ser que tem uma quebra entre o fato e o ato. Nessa quebra, nesse vão, mora nossa consciência. E quem não quer se ver livre dela, pra poder agir sem pensar?

Mas esse papel não nos cabe. A evolução nos carregou para além dos animais que agem puramente por instinto. Somos ou não somos o homo sapiens? Dado que o cérebro está lá, caso você queira agir sem pensar é preciso que alguém pense por você. A televisão, o governo, as marcas, você escolhe. Todos eles estão doidinhos pra assumir o serviço, basta você deixar.

Espero que você, na próxima ver que ler um desses avisos imbecilizantes, te chamando de volta pra casa, pra se proteger, pra salvar seus filhos, use seu bom senso e considere que você já é um adulto, com capacidade suficiente pra julgar por sua própria conta os riscos que o dia-a-dia lhe oferece. Não ceda o controle.

E da próxima vez que você ler um desses termos de uso imbecis, por favor, processe. Processe com gosto. Processe até a conta do advogado fazer bico. Mas, por favor, não por ter sido "enganado" pela foto bonita na embalagem (que dentro dela não tinha a alfacinha) ou pela propaganda de cigarro que vai fazer você virar o terror da mulherada (mas morrer de câncer no processo) ou por ter piorado a sua dengue porque você tomou aspirina.

Processe por que eles te trataram como um bebê que não tem condição de julgar o que é melhor pra você e pros outros à sua volta.


Leitura complementar:
Everyone's gone nuts: The exaggerated threat of food allergies, na Harper's magazine (exemplo prático)

Referências:
Big babies or Why can't we just grow up, por Michael Bywater
(excelente leitura sobre o tema)
Psiche e Techne: o homem na idade da técnica, por Umberto Galimberti (ver "Terceira parte - Psicologia da técnica: teoria da ação" para a excelente análise sobre a separação homem-animal, instinto-consciência; esse livro vai dar pano pra muita manga ainda)

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