Era uma vez Coletivo. Ele vivia pra lá e pra cá. Pouco pensava no que fazia, pouco fazia. Não gostava de trabalhar, às vezes não trabalhava. Tinha fome, comia. Tinha sede, bebia. Às vezes comia demais. Às vezes bebia demais. Coletivo era meio besta, sem propósito.
De segunda à sexta labutava duro, mas nos fins-de-semana, sonhava. Todo sábado e domingo tudo que fazia era sentar-se ao espelho, narcisista que era. Mas não em frente à um espelho qualquer, comum, mas daqueles que distorcem a imagem. Um barato! Nele, Coletivo parecia muito melhor do que era de verdade.
Se era gordo, parecia magro. Se era feio, bonito. Se era pobre, rico. Comum, poderoso. Burro, inteligente. E por aí em diante. Tudo que fosse, o espelho fazia parecer melhor.
E ele gostava. Como gostava daquele espelho mágico. Ele não conseguia mais imaginar-se sem ele. Afinal, a realidade era muito pesada com Coletivo. Era muita violência, muita doença, muita pobreza, muito... muito! Preferia mil vezes ficar à frente do espelho do que encarar a realidade.
Lembrava-se, embora com dificuldade, da época que não tinha o espelho. Não sabe porque, mas tinha a impressão que a realidade não parecia tão difícil de encarar naquele tempo. Talvez por isso o espelho não fizesse tanta falta... mas não era uma vida fácil. Lembrava-se de ter protestado, gritado e lutado contra uma pessoa cruel cujo objetivo era lhe controlar a todo custo, lhe dizer o que fazer, quando fazer, como fazer. Elite era seu nome. Mas ele era jovem, motivado, animado. Tinha energia e disposição para a briga.
Os tempos eram outros, não tinha mais ânimo para protestar. Aceitou, ignorou, abstraiu. Afinal, ele tinha o espelho. Pra quê mais? Na frente dele parecia ainda melhor e mais bem disposto do que quando era jovem.
O espelho tinha sido um presente de Elite, como forma de selar a paz. Coletivo não era bobo, sabia que ela continuava tentando mandar nele como sempre. Mas agora as relações eram pacíficas, cordiais, profissionais. Ela era sua chefe na firma. Ele trabalhava, ela pagava o salário. Simples, fácil.
Mas um dia algo terrível aconteceu. O espelho quebrou. Não ligava mais. Suas imagens tão bonitas agora chiavam cinza como que rindo de seu sonho apagado. Coletivo não conseguia pensar, não conseguia reagir. Quis reclamar, quis matar Elite. Mas tanto tempo se passara que não sabia o que fazer. Sentiu-se impotente, amputado.
Contra o tubo desligado viu seu verdadeiro eu, que há muito não encarava. Aquela imagem acabada, desesperançada, vendida, tão distante da lembrança que tinha de si, não deixou dúvidas do que tinha de ser feito. Agarrou seu precioso aparelho de TV queimado e pulou da janela do 10o andar onde morava.
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